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entrevista

Regressar às origens

Por Lara Sofia Mendes Neves

aluna do 7.º ano da Escola Básica da Mota, Agrupamento de Escolas de Celorico de Basto

No âmbito do Projeto CLIQUE, decidi falar com Armindo Marinho Mota, um escritor nascido em Carvalho, concelho de Celorico de Basto, cuja escrita me inspira. Armindo migrou para Lisboa, mas decidiu voltar para se “reconciliar com as suas raízes”.

Lara Neves (L.N.) — Antes de mais, obrigada por aceitar dar esta entrevista.

Armindo Mota (A. M.) — Eu é que agradeço.

L.N.— Vamos então começar. Como foi a sua infância em Carvalho?

A. M.— A minha infância em Carvalho foi algo complicada e eu não gosto muito de falar sobre esta fase da minha vida. Não porque em casa dos meus pais, apesar do elevado número de filhos que tinham, existissem grandes dificuldades (comparando com a miséria em que naquele tempo a maior parte das pessoas viviam) mas porque eu era um menino inconformado, sempre inquieto, e sentia-me apertado naquele espaço onde tinha dificuldade em “respirar”.

Decerto saberás, ou talvez não, que naquele tempo só estudava, para além da quarta classe, quem tinha muito dinheiro. Ora, os meus pais viviam razoavelmente, como disse, mas não tinham assim tantas posses. Não obstante, eu fui o primeiro dos irmãos a quem foi concedida a possibilidade de ir estudar para um Seminário, única solução compatível com os recursos financeiros dos meus pais. Fui contrariado para aquela Instituição Religiosa porque não tinha vocação, e na primeira oportunidade que me surgiu desisti. O meu pai e o então pároco da freguesia tentaram convencer-me a regressar, mas eu recusei fazer-lhes a vontade porque o que eu queria mesmo era ir estudar para um liceu. O meu pai não correspondeu à minha vontade, porque não podia, e as coisas complicaram-se a partir de então. Eu tinha uma necessidade incontrolável de atravessar a linha do horizonte e libertar-me daquele espaço que me condicionava, e um dia cortei as amarras e fugi para Lisboa.

L.N.— Mas, pelo que sei, não foram só as coisas más que marcaram a sua infância, pois não?

A. M.— Claro que não. Também tive momentos muito felizes, pois tive o privilégio de nascer no seio de uma família em que a harmonia, o amor, a educação e os valores fundamentais reinavam.

Fiz teatro num espaço que havia na parte inferior da residência paroquial, e mais tarde no edifício da Escola, no Largo da Feira. Era uma atividade estranha para uma grande parte das pessoas e criticada pelas mesmas, mas eu achava que era uma das poucas formas que então tínhamos para retirar os jovens das tabernas e desafiá-los a participarem em atividades que tivessem mais a ver com a cultura. Eu próprio escrevi uma peça em que também participei, teria eu nessa altura os meus catorze ou quinze anos.

L.N.— E já nessa tenra idade demonstrava interesse pela leitura e pela escrita, ou isso só se manifestou mais tarde?

A. M.— Sim já em novo lia de forma compulsiva tudo o que estivesse ao meu alcance e escrevia em tudo o que era sítio. Até as divisões do meu quarto, que eram de madeira, serviam para eu escrever durante a noite, às escuras, sempre que uma ideia que eu considerasse interessante me surgisse e eu a quisesse registar.

L.N.— Apesar de curta, durante a sua permanência aqui decerto fez alguns amigos. Ainda os revê?

A. M.— Faz cinquenta e um anos no próximo dia 30 de maio que parti para Lisboa.

Não voltarei! – Exclamei eu, naquele dia, cheio de raiva, quando, já muito agastado, abandonei a minha aldeia. Mas a convicção com que pronunciei estas palavras foi-se esbatendo com o passar do tempo e com o peso da saudade. Eu estava muito zangado porque me sentia que não pertencia à comunidade, e durante um elevado número de anos recusei voltar. E quando, por causa da saudade que não me largava, decidia visitar os meus pais, as visitas duravam escassos dias, às vezes horas, porque eu sentia que algumas pessoas me olhavam como se eu fosse um extraterrestre. Só de há três anos para cá é que vou a Carvalho com mais frequência e sim, procuro rever os amigos de infância, especialmente aqueles que numa fase complicada da minha vida não me viraram as costas. Alguns já não me conheciam, outros estão emigrados, outros já partiram deste mundo e eu não sabia.

Mas aos poucos vou-me integrando, recriando laços e reconquistando o pedaço de chão que me pertence.

L.N.— Mesmo com essa distância que, durante alguns anos, o separou da sua família e amigos, decerto que eles influenciaram de algum modo a sua carreira?

A. M.— Julgo que a tua questão se reporta à minha carreira profissional. Assim sendo, vou-te responder citando um pedaço de um texto que escrevi num dos livros que aguarda publicação, onde eu falo da minha infância, da minha adolescência e da minha carreira profissional. Ei-lo:

 “Escalei a minha montanha e cheguei ao topo apoiado apenas nas minhas convicções, na minha força de vencer, na seriedade com que sempre encarei a vida e a minha atividade. Não beneficiei dos favores nem da proteção de ninguém. Não me descaracterizei nem reneguei as minhas origens. Nunca fui falso para ninguém. Não me vendi em nenhuma circunstância da vida. Mantive-me sempre fiel aos princípios e aos valores que estão inscritos na minha matriz, ainda que por vezes, demasiadas vezes, esta postura jogasse contra mim e me causasse enormes e quase insuportáveis amargos de boca. Julgo que na minha função profissional era olhado como um tipo sensato, controlado, bem-sucedido, porém faltava-me viver uma parte da minha vida, que não tinha ainda vivido: a minha adolescência. Todavia, coloquei isso de parte e limitei-me a trabalhar como um escravo para mostrar a toda a gente que tinha valor, que era competente, que era capaz de orientar a minha vida sem ajudas, sem cunhas, sem precisar de uma qualquer orientação superior”.

Naturalmente que o nosso desenvolvimento pessoal e a nossa personalidade, não dependem apenas da nossa essência ou da nossa matriz genética. Somos seguramente influenciados pela nossa família e pelos amigos com quem convivemos mais de perto. Mas a base principal é a nossa cabeça, a nossa capacidade intrínseca de escolhermos os caminhos corretos e tomarmos as decisões adequadas em cada momento da nossa caminhada.

L.N.— Referindo-me, ainda, às suas “raízes”, utilizou algum episódio mais marcante da sua vida como inspiração às suas obras?

A. M.— Eu sempre gostei muito de ler, mas também de escrever. No meu tempo, existia uma biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian que estacionava todos os meses no Largo da Feira, onde podíamos requisitar e levar para casa uma certa quantidade de livros à nossa escolha. Eu era, seguramente, o maior consumidor de livros nessa época. Ao mesmo tempo, percebendo a minha clara tendência para as letras, o padre Nicolau, que vivia no edifício onde hoje está instalada a “Tasca da Clarinha”, ao lado da casa dos meus pais, deu-me acesso à sua biblioteca pessoal, permitindo que eu desfrutasse do acervo que ali existia, sem quaisquer restrições. Nessa altura senti-me o miúdo mais feliz do planeta e descobri que existia mundo para lá da linha do horizonte.Aprendi muito lendo, e foi por essa altura que, embora de forma inconsciente, dei início ao meu percurso de escritor. Escrevi montanhas de coisas, em prosa e em verso, inspirando-me na minha própria vida, nas venturas e nas desventuras próprias de um adolescente inquieto, na luta que travava para realizar os meus sonhos, na amargura que me causavam as críticas dos que achavam que eu decerto não seria normal só porque era diferente da maioria dos miúdos da minha idade, mas sempre com o objetivo muito claro dentro da minha cabeça de que um dia haveria de escrever um livro. Sentia uma estranha atracão pelo mistério que as palavras encerram, e quando me perguntavam o que queria ser quando fosse grande, eu hesitava, baixava a cabeça porque era muito envergonhado e, quando reunia coragem para o fazer, respondia quase sempre desta forma: quero ser engenheiro. Ou então: quero ser escritor.

A minha mãe é que ficava sempre muito preocupada comigo, e quando eu lhe perguntava porquê, ela respondia-me: “porque te sinto sempre muito inquieto, sempre insatisfeito, sempre com os olhos postos num ponto que eu não alcanço. És ainda uma criança e parece que estás sempre a querer fugir. Sempre ansioso, sempre a olhar para as nuvens à espera que elas se rasguem e te abram caminho, sei lá eu em que direção. Preocupas-me muito, meu filho. Às vezes sinto que no teu peito se abriu uma cratera e eu não consigo descortinar uma forma de preencher esse espaço”.

Por isso, sim, em cada livro que escrevo deixo um pedaço da minha vida.

L.N.— Li dois dos seus últimos livros e fiquei encantada pela história. Pensa ser uma inspiração para jovens escritores?

A. M.— Não sou ousado ao ponto de pensar que os meus livros possam ser um exemplo para algum jovem escritor. Até porque há quem afirme que os escritores não são pessoas normais, e que pessoas normais não são escritoras. O que te posso dizer é que qualquer jovem que sinta apetência para escrever não deve deixar de o fazer. Ganhe coragem, prepare-se, dê asas à sua inspiração e escreva. Escreva o que lhe vai na alma, escreva sem vergonha, com o coração aberto (mesmo que doa). Escreva de acordo com a sua forma de ser, de acordo com o que a sua essência lhe ditar, mas com sinceridade, com verdade, com absoluto respeito pelos leitores.

Depois, tenho de reconhecer que nem toda a gente gosta de romance, que é o género de literatura que eu escrevo. Mas eu escrevo apenas pelo prazer de escrever e é neste registo que me sinto confortável.

L.N.— Atualmente, existem mais pessoas a querer fazer da escrita a sua vocação. Que conselho daria a alguém nessa posição?

A. M.— Não gosto de dar conselhos a ninguém. Todavia, sugeriria a quem tivesse um pensamento desta natureza que retirasse essa ideia da cabeça e pensasse num modo de vida que lhe permitisse ter uma existência decente. É uma ilusão pensar que se pode viver apenas da escrita. Raríssimos são os escritores que sobrevivem à custa dos livros que escrevem. A maioria não sobreviveria se não tivesse uma atividade que lhes conferisse suporte financeiro para poderem ter uma existência com alguma dignidade. O processo de produção e publicação de um livro é muito complexo e o autor é o parente pobre deste processo, é o que menos lucra. Escrever por prazer, sim; fazer depender a sobrevivência da escrita é quase suicídio.

L.N.— O que o senhor quer dizer é que quem quiser ser escritor não deve depender apenas disso, mas ter também outra profissão que lhe assegure sobrevivência?

A. M.— Exatamente.

L.N.— E para terminar, pensa em publicar mais livros?

A. M.- Comecei a escrever o meu primeiro livro que publiquei quando me retirei definitivamente da minha atividade profissional, no ano de 2015. Contando com esse, como saberás, já escrevi e publiquei três livros.

L.N.— Sei sim. E também já tive oportunidade de ler dois desses livros e adorei-os.

A. M.— Fico contente por saber que tal acontece. Mas, respondendo diretamente à tua pergunta, digo-te: sim, publicarei mais livros. Tenho neste momento mais três exemplares concluídos e preparados para publicar. Ainda não o fiz porque preciso de tempo para “respirar”. Mas não demorarei muito tempo a fazê-lo.

 Acrescento que, um dos livros que referi, constitui uma modesta homenagem à terra que me viu nascer, aos meus amigos de infância, aos meus pais e às pessoas que na altura teriam idade para serem meus avós mas com quem eu aprendi imenso e que, devo reconhecê-lo sem falsa modéstia, contribuíram para a formação do homem que sou.

L.N.— Obrigada por esta entrevista.

A. M.— O prazer foi todo meu.

L.N.— Adoro o seu trabalho e espero que continue a escrever.

Celorico de Basto, 11 de abril de 2018

sob orientação da professora Rita Dias

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